desisto

Sinto o mundo girar silencioso, calmo como uma bomba. Não te ouço e desisto de ti. O pior em cada átomo é não saber se ensurdeceste à minha voz. O amargo é saber-te árida, deserta de mim quando um dia antes fui selvas inteiras de vida em ti. Reinventaste-me como o fiel retrato bruto da tua ausência. Mas há em ti uma esmola de eternidade, um querer ver-te...mamã. Há um colo onde nascem as respostas. Calo-me e não vou perguntar-te nada; sei que a minha voz te fará desaparecer de novo. Sinto o mundo girar silencioso, ciente de um qualquer darwinismo sádico onde já não podemos evoluir. Viro-te as costas e desisto de ti...

o erro

mea culpa. era meu o esconderijo - errei ao partilhá-lo contigo e paguei caro.


é meia-noite todo o dia e não tenho para onde fugir. lugar nenhum! nem os meus destroços para trepar nem uma vaga que sacuda o que resta de ti.

não calculei que ao pisares aquela areia irias infectar todas as praias e que o esconderijo seria hoje amplificador simultâneo do teu cheiro.

como tu, também eu fugi! sabes que tentei o antídoto...mas a química não perdoa, amor. o planeta é um majestoso organismo vivo e tu mudaste-o. se as ondas que dançam comigo têm a tua seiva, e o próprio sal é do teu, pergunto-me porque não me olhas com esses olhos verde-científico.

aproximas-te ?

aproximas-te,
cais de joelhos no chão inebriado pelas roupas que despimos.
seduzes-me, lambuzo-te, provocas-me, envolvo-te,
como delicada porcelana pintada com malícia.
aproximas-te,
bebes da minha taça e derramas os teus licores p'lo meu corpo.
aproximas-te,
e num gesto banhado a mel romano rompemos a inércia do tempo.
aproximas-te,
e abraçados deixamos repousar as taças.
aproximas-te,
deixamos o luar imprimir novas sombras na tua pele,
em contínua pulsação, ansiosa. aproximas-te?

requintes

vamos beber exuberância, vamos dar tréguas
naveguemos a barca da maldade, com tesão,
por este irado rio de prazer galgando margens

vamos beber tinto. porque queres, porque tens sede.
não há tempo não há relógios nem rúbricas rápidas
apenas a demorada caligrafia rubi do nosso orgasmo

há muitas luas...

o luar era o nosso palco e crer no seu brilho paria actos loucos.

hoje...
pernoito em palcos sujos e a lua é de papel ordinário.
os dias correm áridos como os versos que não te dedico,
e apesar de tudo: a euforia da tua presença vai ardendo,
em altíssimas labaredas regadas pela tua seiva.

nenhum olhar

espreito pela janela. creio que nenhum olhar, nenhum olhar pode ser tão lúcido como este. sente-se o pulsar das artérias e a vida nos objectos.
penso se algum dia serei o carbono de uma folha igual à que a árvore deixou cair.
passou um segundo apenas, e toda a via láctea se estendeu no telhado em frente para minha requintada contemplação. e nenhum olhar, nenhum olhar durou tantos anos.
no outro segundo abandono a janela, e é apenas mais um dia.

Diz-me...

que não te rendeste à tua sombra.
que não baixas a guarda.
que resistes.
Diz-me:
que não te imaginei,
que por um segundo,
habitei o teu corpo e me demorei.

hedonistas

Deitamo-nos nos lençóis dos outros

Dizemos maldades requintadas

E amamos com o despudor de semi-deuses

Suámos os nossos corpos como um só

Respiramos como um só

Sofremos de prazer

Pedes-me

Peço-te

Ordenas

Obedeço

Peço-te

Concedes

Fodes-me

Vimo-nos

Rimo-nos

Sufocamos o mundo com o nosso orgasmo

E assinamos um pacto de prazer.

O Teu Sorriso

O teu sorriso é uma dança pagã. O teu sorriso é um rasto de eternidade, e as tuas mãos nos seios uma arquitectura de gregos. Faço-te gemer em sonhos e sonho que o teu deleite e a minha dor copulam numa fogueira magica.

Portinho meu lar

Porto de abrigo que não me esconde de ti. Portinho meu lar, sofá de areia. Portinho meu lar, santuário de amantes e caminhos errantes nos teus olhos doidos. Portinho meu lar...

Outono

Desta vez é Outono nos meus olhos e o meu ombro não é repouso. Não és tu. És outra qualquer. Apenas existes entre vapores de esquina e miragens de baloiços enferrujados. Somos impérios corrompidos e roídos. É Outono, volto ao jardim onde a lua caiu e os teus lábios indecentes anunciavam a madrugada, e a via láctea e tudo tudo tudo.

momentos que se perderam na areia.

momentos que se perderam na areia, ou, o elogio dos amantes.
vi as marcas que deixaste na areia
que não sendo movediça se movia
por comando mansinho da tua anca.

quando me fitas comprovas que tens sal quanto baste.
se somos um único organismo vivo, pergunto-me:

se os teus olhos me olham como eu olho o mar.

anoitece

hora de sair. visto roupa engomada por cima dos vincos que deixaste, e diluo-me numa multidão que nunca foi minha. inquietam-me os ponteiros do relógio. este tempo não é meu também. anoitece devagar. anoiteces comigo - és a ignição do luar e dos sons nocturnos. és o piano selvagem e a harmónica de blues. perdi-te na multidão. ontem amanheciamos, hoje anoitecemos. onde estás?

versos soltos

Vives e cantas dentro das minhas veias.
e os teus labios são nuvens incandescentes
que me fervem os sentidos e a carne.
e os teus seios, sorrisos de ritual pagão.

dos teus pés ao cabelo subo em escada expiral gemida.
o teu nome é um idioma que aprendo nas horas vagas.
até sermos poeira cósmica, e renascermos novamente.